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Algumas Palavras

  • Foto do escritor: Laura Machado
    Laura Machado
  • 29 de out. de 2016
  • 5 min de leitura

Chawton, 27 de Outubro de 1811

Minha querida irmã,

Não se alarme. Esta não é uma carta de adeus. É talvez um pedido antecipado de desculpas. Você notará que eu peguei o dinheiro que guardava embaixo da estatueta em cima da lareira. Não guarde ressentimentos de mim. Nunca foi minha intenção roubá-la. É somente um empréstimo do qual necessito por enquanto. Sei que já devo a você mais do que terei a oportunidade de retribuir em toda a minha vida e espero com todo o meu coração que você entenda minha escolha. Logo compreenderá que ela lhe beneficiará enormemente. Não era segredo que eu já havia há muito tempo me tornado um empecilho em suas vidas, mas não terá mais que se preocupar com isso. Como sabe, hoje de manhã acompanhei a senhorita Allen até a cidade e, enquanto ela se ocupava com sua lista de compras, arrisquei-me até a livraria no final da rua. Estou certa de que o vendedor já notara o tempo que eu vinha passando lá e já devia ter me visto lendo o livro da Lady escondida no fundo da loja, mas ele não se incomodou. Alguns dias atrás, eu terminara de lê-lo, mas me era difícil desapegar, terrivelmente doloroso ter de aceitar que tinha chegado ao final, por mais maravilhoso que fosse. Você me conhece melhor do que qualquer outra pessoa e compreende minha sempre constante determinação em não me deixar abalar pela minha situação um tanto desesperadora. Quando Ernest me propôs casamento, soube que era a saída da qual precisava. Aceitando sua mão, eu não teria mais que viver de favor com você e seu marido, não teria que passar meus dias aflita por me impor em suas vidas. Ernest Vickridge prometera cuidar de mim e me oferecera uma vida extremamente mais confortável do que eu jamais havia imaginado. Além de uma grande casa e inúmeros criados à minha disposição, eu carregaria o sobrenome Vickridge, que leva em si mais reconhecimento do que eu verdadeiramente mereço. Todos em nosso círculo mais próximo chegaram a falar de como mamãe e papai estariam orgulhosos se estivessem vivos. Serei eternamente grata pela sorte que tive ao conhecê-lo, pela oportunidade de poder escolher, mas tampouco dou-me ao luxo de ignorar a tristeza que viria com nosso casamento. Ao chegar à última frase de Razão e Sensibilidade, senti-me tocada pela ideia de que uma mulher poderia ter criado algo tão belo e precioso como aquele livro e percebi que anseio por muito mais do que uma vida confortável. Entretanto, só percebi que estava disposta a abrir mão da segurança ao encontrar uma moça de chapéu branco que buscava o livro do qual eu ainda não conseguira me soltar. Ela me entendeu como eu nunca dera a ninguém a oportunidade de me entender. Não possuía nenhuma beleza excepcional, mas o brilho em seus olhos combinava com um sorriso esperto e misterioso que me deu a impressão de que guardava por trás de seus lábios todos os segredos do mundo. Eu questionei o que se sabia sobre a autora, e, juntas, especulamos seu nome, sua posição e seus sonhos. Quis saber se ela teria qualquer fortuna e um nome de respeito. Poderia apostar que tinha. Uma moça em uma posição parecida com a minha não teria tempo ou disposição para escrever um livro. Aquele devia ser um privilégio de poucos. O mundo precisaria conspirar a seu favor. A moça do chapéu branco discordou. Acreditava veemente que a autora era de origens modestas e que não perdia tempo aspirando ao dinheiro e desejos fúteis. Ainda que tivesse a maior fortuna do país e vivesse embaixo de tetos reais, a moça estava certa de que a autora estaria disposta a abrir mão de tudo para escrever. Como pode saber?, perguntei. Está nas entrelinhas, disse ela. Foi-me impossível esconder até de mim mesma o quanto aquela informação me fazia sentir bem mais próxima da autora, que não chegou a assinar o livro. Era somente uma suposição, mas ela despertava em mim uma esperança que eu não sabia ter. A pessoa que eu mais admirava no mundo, ainda que não soubesse seu nome, não devia ter nada, nada além do que eu segurava em minhas mãos. A moça pôde ver em meus olhos o quanto esse livro significa para mim. Provavelmente nunca tornarei a encontrá-la, mas espero estar enganada. Ainda lhe devo mais agradecimentos do que pude expressar. Não somente pelo livro, que ela comprou para mim depois de contar as moedas que tinha no bolso. Mas pelo que disse em seguida. Nos últimos dias, desde que Ernest me oferecera a solução para todos os meus problemas, havia uma pergunta me importunando, e a moça, uma estranha como era, parecia ser a única pessoa capaz de me responder. Tive de juntar certa coragem e bem mais petulância do que me era apropriado para perguntar se ela acreditava que todos nós temos a chance de encontrar um amor como o do livro. O que a autora faria?, questionei, deixando transbordar em meu rosto minha angústia e indecisão. Ela recusaria um casamento seguro e certo pela chance de encontrar um amor assim? Ela escolheria o incerto ou prezaria pela segurança financeira? Nenhum compromisso deve ser feito senão por afeição, me respondeu a moça. Não há sofrimento maior que um casamento sem amor. E nem todo sonho e felicidade podem ser encontrados em outras pessoas. É engraçado, minha querida irmã, como algumas palavras têm o poder de mudar um coração e, com um pouco de sorte, salvar uma vida. Eu a ouvi como se ouvisse a meus próprios pensamentos e tivesse, pela primeira vez, o privilégio de conhecer a mim mesma. Em poucos segundos, minha angústia tornou-se esperança, e, ainda que o medo do incerto me atinja, nunca será maior do que o medo de não ser quem eu gostaria de ser. Uma vida confortável e sem problemas financeiros seria agradável a qualquer pessoa, ainda mais a mim, que nunca tive a chance de provar o contrário. Mas agradável nunca me seria o suficiente. Quero muito mais do que não ter preocupações e perder horas do meu dia desenvolvendo habilidades que só existem para que os homens possam me considerar digna. Não tenho qualquer interesse em atrair esse tipo de admiração, nem mesmo de Ernest, que só abriu seu coração para mim. Não desejo essa segurança vazia para ninguém, nem para mim. Se o amor verdadeiro cruzar meu caminho, estarei aberta a ele. Mas Ernest Vickridge nunca o poderia ser. Não posso continuar a morar com você, minha querida Aretha. Serei eternamente grata por tudo que você já teve a bondade de me fazer, principalmente pela incondicional hospitalidade que me ofereceram, mas está na hora de eu tomar minha vida em minhas mãos. Sei que perderei o pouco do prestígio que nosso nome ainda possui e encontro consolo em saber que o sobrenome de John a protegerá. Peguei seu dinheiro emprestado para comprar uma passagem de trem para Londres, irmã, onde buscarei uma pousada e ficarei até conseguir publicar meu primeiro romance. Ainda não sei sobre o que será ou como o chamarei, mas ele será dedicado a você. E à moça da livraria. Devo meus sonhos e minha coragem a ela, que não deve saber ainda a diferença que fez em minha vida. Perdoe-me pelos borrões que minha pressa e animação impedem de evitar. Mas o maior perdão terá que vir por eu não ter conseguido me despedir pessoalmente. Partiria meu coração ter de vê-la. Estou certa de que me compreenderá. Esta carta não é de adeus, asseguro-lhe. É só um até logo. Volto para lhe ver assim que tiver a chance e mandarei notícias todos os dias possíveis!


Com amor, de sua estimada irmã,


Harriet

P.S. Se por acaso encontrar a moça da livraria, ofereça-lhe meus mais sinceros agradecimentos outra vez, quem sabe uma xícara de café e um convite para jantar. Seu nome é Jane Austen.




Nota da Autora: Esse conto foi criado para o desafio de Mulheres Históricas do @FiccaoHistoricaBR. Ainda dá tempo de participar! Vai até o dia 12 de Novembro! Entrem no perfil para saberem mais!

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